Crónica de Mário de Sousa | Joaquim, o último escravo…

 

Crónica de Mário de Sousa
Joaquim, o último escravo…

 

Alto, porte atlético, o peito lançado para a frente permitia-lhe um caminhar rápido e firme. O ombro esquerdo um pouco descaído, acusava o peso de um saco de pano que descia até quase à cintura. A estrada seguia plana até onde a vista alcançava. Para trás ficava Bafatá e ao longe, à esquerda, começava a aparecer a chaminé da velha Cerâmica.

Havia cerca de um ano que Gibril Mané não vinha à sua tabanca. Chegara a meio da noite de Bissau e ficara até de madrugada abrigado da chuva na bomba da BP. Quando o sol conseguiu secar as nuvens meteu pés ao caminho direito a Sincha Mamudo o seu chão, a sua tabanca, onde sempre vivera até ser mobilizado para o serviço militar dos portugueses.

A vida desfilava agora no seu pensamento. Quando tinha chegado o tempo de ir para a escola, a entrada foi-lhe recusada porque não tinha nome português. O pai levou-o à ‘Missão’ para resolver o assunto, mas era preciso um batismo para ter um nome cristão. Gibril, como todos os seus irmãos, tinha apenas andado na madrassa de um marabu[i]. Estudou o catecismo, foi batizado e passou a ser Joaquim. O Gibril tinha desaparecido.

Terminados os estudos, o pai levava-o consigo para trabalhar na Cerâmica sempre que havia trabalho. Por lá andou até ser mobilizado para a o exército português. Cumpriu três anos. Os portugueses cumpriam dois. Joaquim começava a entender como era difícil ser português.

Mas acabou por integrar uma Companhia de Comandos Africanos. A ideia agradava-lhe porque iria receber um salário todos os meses, e isso permitia-lhe pôr comida na mesa da família e começar a construir uma casa. O pai tinha fugido para o Senegal perseguido pela PIDE e nunca mais tinha voltado.

Joaquim foi a Bissau receber a farda de comando e seguiu para Fá Mandinga no leste da Guiné. Um ano depois, terminado o curso, voltou para Bissau ficando a pertencer ao quartel de Brá de onde saía para as operações no mato. Na verdade, eram tropa que não existia. Largados de helicóptero por vezes de cinco metros de altura perto das zonas de intervenção, terminada a operação, desapareciam sem deixar rasto.

Mas aconteceu a Revolução dos Cravos em Portugal e em Setembro de 1974 o Batalhão de Comandos Africanos foi extinto sem que a situação desta tropa de elite fosse salvaguardada.

A 19 de Outubro de 1975 o último contingente português tinha abandonado a Guiné-Bissau e o PAIGC começou a perseguir os ex-comandos, fuzilando sumariamente os que apanhava depois de os torturar, acusando-os de traição à Pátria.

Joaquim, abandonado pela tropa portuguesa, certo dia meteu num saco as suas bambas, escondeu a farda, enterrou o nome de Joaquim e fugiu de Bissau rumando à sua Sincha Mamudo. Voltara a ser Gibril Mané.

À sua chegada foi mal recebido por muitos. Beijou a mãe e sentiu nas suas lágrimas o medo pelo seu único filho ainda vivo. Com Adama apertou-a nos seus braços fortes e no beijo que lhe deu sentiu no tremor dos seus lábios, o pavor de o ver preso e assassinado. Nessa noite ainda antes da madrugada, Gibril acordou Adama, reuniram alguns pertences e rumaram, estrada fora, procurando um destino diferente da morte certa que o esperava. Mal tinham saído de casa, Adama voltou a entrar e de uma parede tirou um retrato do seu herói, fardado de comando, na porta de armas do quartel de Brá. Guardou-a no peito, junto ao coração.

Dois anos se passaram e Gibril agora era pescador no Cacheu. Adama ajudava-o sendo bidera[ii]. Viviam na tabanca de Pessamar. Todos os dias Adama ia até ao porto, enchia a sua bacia com peixe e corria pelas tabancas anunciando a sua presença. Certa vez, ao guardar um dinheiro, caiu-lhe do bolso uma fotografia sem que ela desse por isso. E por lá ficou, pisada por todos, quase se desvanecendo a imagem em vincos da poeira do chão.

Por essa altura começaram a vir vozes do Canchungo de que o PAIGC tinha por lá feito prisões. Gibril, com medo, fugiu para os matos do Bucanal voltando a casa só para vir buscar vianda.

Mas nunca mais foi o mesmo. Uma tristeza enorme inundava o seu forte peito e tirava-lhe espaço para o ar. Pensava naqueles em quem tinha confiado e sentia um sufoco muito grande. Os olhos ficavam tristes, os braços perdiam força.

Pouco comia. Cada vez tinha menos vontade para o bolo de mandioca, o bagre fumado e o azeite de dendém que Adama lhe mandava, quando de madrugada ele por lá aparecia. Foi definhando, de tristeza. A pele colou-se aos ossos e o cabelo de tão escorrido começou a esbranquiçar que mais parecia estopa. Veio a monção e Gibril apanhou febres. Arrastou-se até casa e durante vários dias ficou prostrado na esteira, bebendo apenas chá de folha de mangueiro que Adama lhe dava a beber. Mas aconteceu o inevitável. Numa alta madrugada, enquanto assoprava as brasas para aquecer o bolo de mandioca, Adama gritou de susto. Três homens tinham entrado na casa precipitando-se sobre Gibril. Acordaram-no, puseram-no de pé e amarram-lhe as mãos. Depois um deles tirou do bolso uma fotografia muito amarrotada e suja dizendo: … É este. É o Joaquim.

Enfiaram-lhe um saco na cabeça e arrastaram-no para fora da casa descendo a Rua Garandi. Adama gritou, depois, soluçou, pediu perdão e banhada em lágrimas, meio sufocada, correu atrás deles implorando que libertassem o seu Gibril. Não deixava de ser irónico que Gibril, quase 300 anos depois, descesse arrastado essa rua, como tinha acontecido ao último escravo embarcado no Cacheu. Quase a chegar ao porto, já sem forças, os seus gemidos não passavam de um balbuciar misturado com lágrimas e saliva. Em aflição correu para a ponta do cais e ali permaneceu chorando, até deixar de ouvir o chapinhar dos remos na água. Lá longe a canoa com os quatro homens era uma linha estreita, negra, incendiando-se no Sol que nascia anunciando um novo dia.

Os anos passaram. Hoje Adama é uma velha. A sua pele está enrugada como a pele do peixe bagre quando o fogo aperta nele. Tem poucos dentes e quando fala a língua passeia-se pela boca, desenfreada, atropelando sons. Os olhos, esses, continuam melancólicos perscrutando aquele mar do Cacheu e esperando, esperando sempre, que a canoa que viu partir, regresse devolvendo-lhe o seu Gibril!

“…Cacheu, se um dia voltar

Vou voltar a chorar.

Cacheu, se esse dia chegar

Vou pedir ao tempo que pare

Para eu te contemplar.”[iii]

 

Mafra, 29 de Setembro de 2022

Mário de Sousa


[i] Marabu: ao sul do Saara é um estudioso do Alcorão, ou professor religioso e líder da comunidade religiosa local.

[ii] Bideras são mulheres que vendem hortícolas, frutas e aves de capoeira nos mercados ou de porta em porta. No caso deste texto, porque se trata de um porto de pesca, as bideras são também as mulheres que compram peixe aos pescadores e o vendem pelas tabancas.

[iii] Canção com origens antigas na tradição popular. Segundo se diz seria uma cantilena semelhante que os escravos cantavam em crioulo na marcha para o embarque.


 

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